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A Terra e as Caraíbas

Nilson Jaime*

“Ah, se essa caraíba falasse!”, diria Rosa, fosse viva, em sua sabedoria sabida e matuta, indesde que, mocinha em flor, saíra da roça e fora servir na casa do menino Bernardo e seus pais, Erico e Marieta, na margem direita do Corumbá.

Fora Rosa – moça sertaneja valente, respondona, palpitenta, teimosa, enxerida, analfabeta, mas que sabia tudo sobre tudo – quem introduzira Bernardo no mundo surreal dos seres míticos do sertão.

Fora Rosa – com suas estórias contadas com os olhos arregalados e a voz exagerada e afetada – quem instilara no cachopo Bernardo o gosto pela ficção, e sua principal ligação com o universo coloquial do sertão.

Mas hoje quem suspira – olhando o verde faiscante das folhas compostas digitadas, com folíolos subsésseis-peciolulados, no calor do verão; ou o galhario desfolhado da árvore decídua e heliófita no inverno cerratense, parecendo que enfezou e amorreu; ou a aurífera florescência vivente com flores levemente zigomorfas; cálice tubuloso, irregularmente lobado e corola amarela, que faz doer os olhos, quando agosto do desgosto chega –, é Maria Carmelita, segunda esposa e amor outonal do imortal de Corumbá de Goiás.

A escritora e artista plástica Maria Carmelita Fleury Curado – prima de Bernardo Élis –, casou-se e viveu ao seu lado os últimos 16 anos de vida do bardo do sertão. Nos ermos do Jardim América, o casal construiu um ninho de felicidade, em terreno adquirido pela ex-freira quando ainda morava no convento. Da porta do chalé, em estilo suíço, o hexagenário escritor, dezoito anos mais velho que sua consorte, levantava os olhos e via chão a perder de vista. O sertão cerrado sendo invadido pela cidade menina que se achegava a cada dia.

Dava pra assuntar o morro da Serrinha ao Sul e o Mendanha em sentido contrário, com sua vegetação exuberante. Invadindo as ruas de terra recém-abertas, capoeiras de douradinha do campo, alecrins dourados, flores de jacintos, capim barba de bode, lobeiras, baru e até um pé de araticum. Nos amanheceres molhados e nos entardeceres chuvosos, miríades de tanajuras, bitus e aleluias prenunciavam a estiagem, em nuvens prateadas, fazendo a alegria dos bem-te-vis, anus brancos e anus pretos. Quero-queros implicavam com os raros passantes. A noite chegava em lusco-fusco, iluminada por vaga-lumes e pirilampos, ofuscados pela luz elétrica, enquanto os sapos e rãs coaxavam pouco abaixo, nos brejos e veredas do Vaca Brava. Um casal de araras grasnava no oco dos buritis logo abaixo. Os curiangos, corujas e rasga-mortalhas, aves agourentas, anunciavam em rasque-rasque a hora de dormir.

O casal de primos – descendentes longínquos de “Fradinho” e “Mãe Grande”; dos Bartolomeu Bueno, Anhangueras, pai e filho; de João Ramalho e Bartira; de Piqueroby e Tibiriçá – intentou plantar árvore em celebração ao amor florescente. Tinha que ter madeira forte e florescer com viço. O ipê-amarelo, árvore símbolo do Brasil, foi preferência de Bernardo. Dizer do zoto é árvore símbolo de Goiás, mas qual o quê. Bernardo sabia pelo amigo sertanista Leolídio que o pau-papel da Serra Dourada é que é. O escritor nunca falava Ipê, mas caraíba. Caraíba é nome arrumado dos índios, na língua deles “homem sabido”. A muda da árvore, chegada numa lata de querosene perfurada ao fundo, para não ajuntar água e encharcar a raiz, veio com recomendação expressa: “tem que plantar na lua cheia de dezembro ou janeiro, pra mó de dar sustança e viço nas folhas”.

“A caraíba é planta da família Bignoniácea. O gênero Tabebuia a que pertence, possui mais de 60 espécies”, ensina o professor Rizzo. Árvore farturenta, pau pra toda obra, serviria a cabo da enxada que negaram a Supriano. Ou fazer caixão do moribundo, quase defuntento de Liduvino, do Veranico de Janeiro. Ou engenhar pinguela ou canoa para Nhola dos Anjos nas cheias do Corumbá. Cruz para os desgraçados no Tronco. “Pau de dar em doido”, ou forca, para a jagunçada excomunguenta no Duro, que fez tanta mardade. Ou instrumento musical para o sujeitinho metido a rabequista.

Por acá no comércio, e por alá no sertão, é chamada de “para-tudo-do-campo”; “para-tudo-do-cerrado”; “pau-d’arco”; “caraibeira”; “carnaúba-do-campo”; “caroba-do-campo”; “carobeira”; “carobinha”; “cinco-em-rama”; “cinco-folhas-do-campo”; “claraíba”; “ipê-do-cerrado”; “ipê-do-campo”; “ipê-amarelo-paulista”; “aipé”; “ipê-amarelo-cascudo”; e um sem número de nomes nesse sertão de meu Deus que só Rosa saberia dizer. Se não soubesse, inventava. Um botânico diz se chamar Tabebuia aurea (Mart.) Bur., ou Tabebuia caraiba (Mart.) Bur., que é a mesma coisa. “Um entendido ficou de assuntá as flor pra mode saber melhor”.

Um belo dia no mês de agosto, com a árvore desfolhada e sequilenta, apareceram as primeiras flores, o sexo das plantas: cálice, corola, estames, anteras, ovário. Amarelo de dar gosto, parecia oiro. Uma abóboda aurífera de afrontar as vistas, encantando a todos os passantes e aos convivas no chalé do feliz casal. Ano a ano a árvore foi crescendo, até se tornar adulta, uma noiva coroada de amarelo-ouro.

“Ah, se essa caraíba falasse”. Quanta prosa! Quanta poesia! Quanta proesia! Quantos projetos e sonhos feitos e desfeitos. Sob sua copa florescente, pisando corolas amarelas coalescentes ao chão, caíram e coroaram-se reis. Fizeram-se imortais da AGL. Carmo recitou sua Jurubatuba, Ely o seu Pium e a prima Rosarita os Elos da mesma corrente. Miguel Jorge sorveu Veias e Vinhos para não subir Nos ombros do Cão. Com os irmãos Jesus e Joaquim Jayme fizeram revoluções.

Sob a copa primaveril ou outonal da caraibeira, poetou com Gilberto e polemizou com seu mano José Mendonça Teles e Siron Franco. Sonhou como Brasigóis, Coelho Vaz,  Kleber Adorno, PX e Aidenor. Viu nascer Bira Galli, Luiz de Aquino, Paulo Bertran, Edival Lourenço, Abílio Woney e Lêda Selma. Sofreu as dores da ditadura com Horieste e Euriquinho. Posou para Amaury, José Asmar, DJ, Isa Costa, Octo marques e Maria Carmelita. Filosofou com Jávier Godinho, Licínio, Ursulino e Jerônimo Geraldo de Queiroz. Politicou com Hélio de Britto, Marcus Fleury e José Luís Bittencourt. Terminou o chá com Amália Hermano, Nelly Alves de Almeida e Ana Braga. Dois dedos de prosa viravam duzentas braças de conversa com José Fernandes e Modesto Gomes. Sob a chuva prateada de flores decíduas, discutiu dez novos colóquios com Bariani e Carmo.

“Ah, se essa caraíba falasse!”. Mil amigos por ali se despediram: Alaor, Antônio Moura, Augustinha, Delermando, Emílio Vieira, Getúlio Targino, Hélio e Reinaldo Rocha, Martiniano, Hamilton Carneiro, Moema, Paulo Araújo, Olavo Tormim, Taylor Oriente e uma constelação de outros astros de grande quilate da cultura goiana.

Foi sob a copa da caraibeira, com o jovem jornalista Euler Belém, que desatou o nó górdio da Fundação, no Dia do Não-Fico, quebrando o cálice de fel e cicuta, rompendo os grilhões com a burocracia.

Foi à sombra da caraibeira que Goiás ficou mais imortal com Austregésilo de Athayde, Alceu Amoroso Lima, José Olympio, Luís Jardim, Jorge Amado e Arnaldo Niskier.

O mais frequente de todos os amigos, Leolídio Di Ramos Caiado, visitou Bernardo Élis diariamente, nos últimos meses de vida do imortal. As frequentes despedidas testemunhadas pela árvore caraíba foram se escasseando até desaparecer, quando o velho Caraíba se foi.

Foi debaixo da icônica caraibeira que aconteceu o juramento de uma vida: “Maria, promete que não vende essa casa?”. “Que isso, meu amor! Você será imortalizado nela!”.

Bem vindos à Casa Bernardo, sede do Icebe! Aqui se pensa e se estuda Goiás, sua cultura e os povos do Cerrado. Uma casa de caraíbas, a árvore e o escritor.

Salve Bernardo Élis!

Goiânia, 5 de março de 2020

*Nilson Jaime é mestre e doutor em Agronomia e vice-presidente do ICEBE.